quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Exu e Ogum no terreiro de samba: um estudo sobre a religiosidade da escola de samba Vai-Vai por Claudia Alexandre

A pesquisa para o meu Mestrado teve como título "Exu e Ogum no terreiro de samba: um estudo sobre a religiosidade da Escola de Samba Vai-Vai" e foi mais um passo para defender minha hipótese no estudo das religiões afro-brasileiras e africanidades culturais, que é: a impossibilidade de apagamento da memória ancestral das manifestações culturais de matriz africana, por que estas resistem, em um processo histórico-cultural adverso, elaborando diferentes formas de permanência, incluindo em suas práticas elementos e símbolos que mantém similitudes com as formas do sagrado. O trabalho realizado entre 2016 e 2017 finalizou após observar como modelo a relação que a Escola de Samba Vai-Vai mantém com a religião afro-brasileira, incluindo em sua rotina carnavalesca rituais de candomblé, sob o comando de um balaorixá (pai-de-santo, Francisco D'Oxum), contratado em 2004. São 166 páginas, que retratam os rituais profanos e rituais sagrados da escola. A defesa da dissertação ocorreu em 22 de novembro de 2017, tendo como examinadores os professores Doutores Enio Costa Brito (PUC-SP) e Vagner Gonçalves da Silvas (USP), além do suplente professor Dr. Antonio César Rodrigues (Cubatão) e meu orientador Edin Sued Abumanssur (PUC-SP). Por unanimidade a pesquisa foi acolhida na academia com a nota 10! Enfim, Mestra em Ciência da Religião. Segue na íntegra das minhas Considerações Finais: Na fase final deste trabalho, durante a seleção das fotos e imagens para compor o estudo, fiquei surpresa ao ter acesso à imagem aérea da Rua São Vicente, no Bexiga: as ruas se cruzam e formam o desenho de um tridente, bem diante do terreiro de samba. Seria Exu confirmando seu domínio sob aquele território negro? Recorri aos depoimentos e percebi que havia uma associação com o que está no imaginário do grupo, que confirma que o dono daquele lugar é o orixá Exu, aquele que exige precedência, o controverso, de múltiplos e contraditórios aspectos, o guardião dos templos, das casas, das cidades e das pessoas. É ele o intermediário entre os homens e todos os orixás. EnquantoExu é a comunicação, o irmão inseparável Ogum é o caminho. E esse estudo sem a permissão deles só encontraria o silêncio. Aos poucos foram revelando informações sobre este continuumque coloca as práticas de Candomblé dentro de uma escola de samba. Foi preciso compartilhar dessa visão de mundo, desde dentro,para superar os desafios que foram surgindo no decorrer do trabalho. Percebi que muitas são as questões que problematizam este tipo de pesquisa, o que exigiu um grande esforço no momento de selecionar as questões centrais. Não foi nada fácil atravessar esta encruzilha. Dada a falta de estudos sobre este tema específico, além da complexidade sobre a relação das religiões afro-brasileiras com as escolas de samba, esta pesquisa tem desde o início a intenção de inserir novos discursos, neste campo tão vasto para futuras explorações. Assim como as encruzilhadas que apontam que haverá sempre muitas possibilidades, com caminhosque não se esgotam, ainda há muito a se estudar sobre o tema. Com esta pesquisa foi possível perceber como se dão as relações interpessoais e sociais entorno de combinações simbólicas, que permeiam o universo do carnaval. Vimos que a religiosidade da Escola de Samba Vai-Vai se apoia na memória ancestral de corpos negros, que vivem e revivem experiências de um tempo histórico-social de desigualdades, elaborando formas particulares de resistência, usando rituais religiosos e profanos, que ora se diferenciam, ora se assemelham. Retomamos à Vilhena (2005, p. 59), quando diz que: A linguagem simbólica dá sentido ao que um grupo realiza entorno do que lhe é sagrado, com propriedade de relacionar realidades aparentemente desconexas, reunir o que está disperso, apontar para o que não se vê e organizar o que parece caótico. [...] Como o sagrado, o símbolo é irredutível a uma única e dada significação, comportanto, aceitando e exigindo trabalho constante de interpretação. Um estudo que se propõe abordar a relação entre religiões afro-brasileiras e expressões da cultura afro-brasileira deve se demorar um pouco no exercício de juntar fragmentos de matrizes africanas, que foram espalhados pela dominação do pensamento eurocêntrico, para daí então, perceber que estes fragmentos permanecem conectados, de uma forma ou de outra, porque guardam partes iguais de um todo. São estas partes da história que mostram astentativas constantes de apagamento de africanidades, e o desprezo pela forma de conceber o mundo, onde vida e natureza têm igual valor. Por isso, é possível afirmar que a religiosidade da escola de samba Vai-Vai está para além do resultado estético apresentado nos desfiles carnavalescos. Ao forjar um sistema religioso, que preserva dentro do seu espaço físico altares de santos católicos; assentamentos de orixás, festas afro-religiosas e práticas rituais de candomblé, a escola de samba marca de forma peculiar sua presença num território, que sempre foi de negociações e confrontos. Vimos que resistir pelo sagrado pode ter sidoum caminho para ocupar as ruas. Ali mesmo, no bairro da Bela Vista, em tensões desde a chegada do imigrante italiano, contabiliza-se um jogo de ganhos e perdas. A constituição do popular Bexiga e sua consequente denominação como “bairro afro-italiano” revela uma acomodação nada harmoniosa. Um exemplo, como citado no Capítulo II, foi o desaparecimento da Festa da Santa Cruz e a permanência da Festa de Nossa Senhora Achiropita. Hoje, depois de intensa negociação, vemos a participação da comunidade da escola de samba nas atividades da igreja e o envolvimento do grupo católico nas festas da Vai-Vai. Enquanto a Pastoral Afro é parte da Igreja da Achiropita, o pároco, em plena rua 13 de Maio,reverencia a bandeira – símbolo máximo da escola –, dando às bênçãos à imagem do São Jorge, santo sincretizado com o Ogum, quando este passeia pelas ruas, nos braços dos sambistas. Edimilson de Almeida Pereira (2005, p. 502), em Os tambores estão frios, usando o conceito de continuumcultural, fala que no “campo religioso, através da linguagem simbólica, as divindades negras desafiaram as divindades brancas numa reduplicação, em certa medida, das tensões em curso na sociedade escravista e pós-escravista”. Segundo o autor, houve situações de conflito que historicamente obrigaram os afrodescendentes a desafiarem as forças sociais envolvidas em seu processo de marginalização. A negociação sobre as questões sociais e sobre os elementos simbólicos forjaram outro cenário em que negros e brancos mediram forças. A negociação não representou e nem representa a resolução dos confrontos, mas a mudança na maneira de observá-los. No confronto respondido através do desafio, os contendores procuram manter, deliberadamente, a distância entre si. Isso acontece porque cada um faz de sua diferença a garantia de sua identidade, sem abrir canais para a sua interdependência. (PEREIRA, 2005, 502) Acompanhando o pensamento do autor, entendemos o sentido de pertencimento que os sambistas daVai-Vai transmitem,quando tomam as ruas do Bexiga, interditam oficialmente otrânsito em dias de ensaio e ainda fazem a procissão, gritando a saudação ao orixá guerreiro,“ogunye”, que significa “Ogum vive”. A resposta de Pai Francisco, quando pergunto sobre este sincretismo, mostra que há uma delimitação no espaço e uma posição individual em relação a festa católica, pela forma que acontece o diálogo entre as comunidades: Eu não sou sincrético e ali na Vai-Vai o que predomina é o Candomblé, porque os rituais são ketu-nagô. Os altares estão ali pela vontade do presidente Neguitão.Depois de 10 anos de santo, que eu vi que o santo não tinha nada a ver com o orixá. Não há menosprezo. Vou à igreja e à missa, quando sou convidado e não tenho nenhum problema com isso. A Vai-Vai tem uma grande relação. Todos vão à escola e muita gente da escola participa da igreja. Mas ali é candomblé, não ponho nada de sincretismo quando tô tratando dos orixás. Veja aqui no meu terreiro, tem alguma coisa de sincretismo? Pode olhar, não tem nada! A figura do pai-de-santo tem legitimado as festas religiosas dentro da escola, que acontecem aos moldes de casas de culto de candomblé. Vimos que o sacerdote dispõe de grande respeito e conta com o apoio da comunidade para a realização dos rituais e no cuidado com os orixás. Interessante notar que em todos os sambistas há a noção de que o terreiro de samba, não é um terreiro de candomblé, mas que é lugar possível de todas as manifestações que mantenham ligação com a africanidade, assim como disse Thobias da Vai-Vai: Essa nossa ligação com a religião do candomblé, com os orixás sempre existiu, e existe, na maioria das escolas, porque não dá pra separar. Cada uma faz do seu jeito. Escola de samba é uma tradição de cultura afro. A Vai-Vai sempre preservou isso, somos católicos, do espiritismo, da macumba. É da cultura do negro. Esse pensamento, sobre identidade étnico-cultural, sustenta e permite as práticas rituais dentro da escola. Chama a atenção, a aproximação dos rituais carnavalescos com os ritos realizados em terreiros afro-religiosos. O modelo exemplar dessa relação está no quarto-de-santo ou ilê orixá, pois nada representaria uma aproximação tão direta com as religiões afro-brasileiras do que a manutenção de um cômodo para a guarda de objetos sagrados, sob a responsabilidade de um sacerdote. Embora não tenha sido o objetivo da pesquisa um comparativo direto entre as atividades no terreiro de samba, com o de um terreiro de candomblé, também surpreende a forma como o calendário religioso da escola é seguido nos mesmos moldes. Os rituais sacrificiais ao Exu, antes das festas de carnaval, o preparo da Procissão e Feijoada de Ogum, a Festa de Cosme Damião, servindo o tradicional caruru e os xirês, que por uma razão bem especial ocorrem “sem a presença de Oxalá”. São rituais que extrapolaram os muros dos terreiros sagrados e se acomodam no terreiro de samba. E por fim, perceber que este sistema se apoia na atuação das lideranças, com as quais relacionamos o mito dos orixás irmãos-guerreiros: Exu-Ogum e Oxóssi. Os iorubás acreditam que homens e mulheres descendem dos orixás, não tendo, pois, uma origem única e comum, como no cristianismo. [...] Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam esão conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais eles descendem [...] é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. (PRANDI, 2001 ,p. 24). O ritmo, o canto e a dança são essenciais para a vitalidade das expressões afro-brasileiras, mantendo escola de samba e Candomblé em permanente diálogo, como se fossem traços de uma encruzilhada. Para finalizar, espero que este estudo seja motivador de outros olhares ese cruze com novas pesquisas no campo das Ciências da Religião e dos estudos sobre a cultura negra no Brasil. Os caminhos estão abertos! Laròyé! Ogùnyê! Modú pé!

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