sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Cotas raciais nas universidades após 10 anos - e a farsa da meritocracia no Brasil (por Claudia Alexandre)

Na lista das incalculáveis dívidas do Estado brasileiro para com a população afrodescendente está a exclusão histórica da população negra – pretos e pardos – do processo de ascensão e mobilidade social no país, desde 13 de maio de 1888, quando da assinatura da Lei Áurea. Para se ter uma ideia, até o final da década de 90, por causa do descaso com a condição social dos negros, apenas 1,8% dos alunos que adentravam as universidades públicas eram negros e negras, mesmo sendo representantes de mais da metade da nossa população. Um quadro geral de desigualdades pode ainda ser observado em todos os setores da sociedade e na distribuição de serviços públicos. Os piores índices de desenvolvimento humano ainda recaem sobre essa população, negra, parda e, logicamente, mais pobre. Nada novo se considerarmos que o Brasil se constituiu com base no racismo estrutural, fazendo uso de mecanismos como democracia racial e a branquitude – dispositivo que se beneficia de privilégios, desprezando completamente o sistema de desigualdades, opressões, intolerâncias e violências raciais, para continuar se apoiando na farsa da meritocracia. Porém a partir de 2003, quando começam a surgir as políticas públicas de ações afirmativas, após um longo período de luta do movimento negro unificado, é possível mensurar o quanto a política institucional desprezava as desigualdades étnico-raciais no Brasil. Ao negar o direito universal de acesso ao ensino de qualidade à população negra impede-se também a melhora das condições socioeconômicas desta parcela de brasileiros e brasileiras. Há exatos 10 anos entrava em vigor a lei 12.711/2012 que instituía a reserva de 50% das vagas de cada curso das instituições federais de ensino superior para estudantes egressos de escolas públicas. Por força de ações do movimento negro as reivindicações que tornavam constitucionais este tipo de ação afirmativa era finalmente reconhecido no país. Porém, é importante reconhecer o pioneirismo de instituições, que mesmo antes da legislação já aplicavam a reserva de cotas raciais em seus vestibulares: Universidade do Estado da Bahia (UnEB); Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual de Brasília (UnB), seguidas também em 2003 pela UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Vargas). Em São Paulo o debate ganhou corpo apenas em 2010 e só começou a se efetivar após a promulgação da lei. Foi o que aconteceu com a Unesp (2014), a Unicamp (2017) e por último, com muita resistência, a Universidade de São Paulo (USP), que aprovou em julho de 2017 a política de ações afirmativas raciais e étnico-raciais a partir do Fuvest de 2018. Porém na USP havia um pensamento de que as cotas sociais seriam mais pertinentes. O que sempre foi rebatido pelo movimento negro, que mobilizou instituições, provocou reuniões com o Conselho Universitário, atos públicos nos campos da USP e enfrentou opositores de peso de diversos setores da sociedade, inclusive da mídia. Bem antes da lei, em 30 de maio de 2006, O Jornal Folha de São Paulo chegou a publicar uma carta aberta contra a política de cotas raciais. Entre os que aderiram com suas assinaturas, se colocando contrários à adoção da política de cotas nas universidades brasileiras estavam Caetano Veloso, Ferreira Gullar e a escritora Lilia Schwarcz. Para impedir que a política fosse adiante, o Partido Democratas chegou a levar a questão ao STF, exigindo dos juízes que derrubassem todos os processos que já vinham sendo adotados de inclusão pela Universidade de Brasília. O resultado foi uma resposta dura dos juízes, negando o pedido que impediria as cotas raciais em todo país, o que favoreceu a continuidade do movimento que conquistou em 2012 a aprovação da lei 12.711. Que Brasil é esse em 2022? Após 10 anos de aprovação da lei de cotas raciais nas universidades públicas a questão volta ao centro das discussões, já que a norma prevê uma revisão de sua eficácia agora em 2022, quando a pauta deve voltar ao Congresso Nacional. Há ainda quem considere inaceitável a reserva de vagas em universidades para negros e indígenas, ou seja, são contrários às cotas étnico-raciais e preferem uma reserva de cotas sociais. Há os que defendem o fim deste sistema e há quem queria a sua continuidade, até que haja proporcionalidade cor/raça no ensino superior brasileiro. Até aqui, o Brasil só tem a comemorar. Sabe-se que entre 2010 e 2019 houve um crescimento de quase 400% no número de alunos negros e negras no ensino superior. Este dado faz parte de um levantamento feito pelo senador Paulo Paim, autor do PL 4656/2020, que propõe a continuidade da lei, com ampliação do sistema para todos os cursos de graduação de instituições particulares. Todas as universidades que implantaram o sistema atestam um avanço significativo, não apenas na quantidade, mas na qualidade do ambiente acadêmico com o maior ingresso de alunos negros, negras e indígenas. Na UERJ, a pioneira neste tipo de ação afirmativa, em 2003 recebeu 3.056 alunos pelo sistema de cotas raciais e hoje elevou esse número para mais de 7.000 cotistas matriculados. Certo é que a implementação da Lei de Cotas no Brasil demonstrou em dez anos sua importância e deve ser aperfeiçoada e ampliada, a partir das experiências que foram sendo desenvolvidas ao longo deste período. Ainda é preciso garantir a permanência destes estudantes no ambiente universitário, pois muitos não conseguem se manter porque a questão socioeconômica e de sustento fora da cidade de origem, ainda é uma realidade muito mais importante, do que o medo que ampara o discurso contrário à política de cotas, de que aumentar a presença de negros, negras e indígenas nas universidades, derrubaria a qualidade das nossas universidades. Quando na verdade o que precisamos é derrubar com urgência a estrutura racista que sustenta este pensamento! (Artigo escito para o Jornal Notícias Aclimação & Cambuci - SP. Edição 26/08/2022)