domingo, 15 de julho de 2018

Claudia Alexandre fala ao Tramas Culturais

Aula-palestra de Museologia da UFBA com a pesquisadora Claudia Alexandre abordou Práticas afro-religiosas da Escola de Samba Vai-Vai

Falar sobre a importância da valorização do patrimônio imaterial na perspectiva da Ciência da Religião foi um dos objetivos da aula especial que eu tive o prazer de ministrar para a turma do Programa de Museologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia), em Salvador, no dia 20 de junho de 2018, para as disciplinas de Preservação de Patrimônios, a convite das Dras. Graça Teixeira e Rita de Cássia Maia. Além de falar da minha vivência profissional junto ao samba e escolas de samba de São Paulo, o objetivo foi compartilhar dados da pesquisa do meu mestrado na PUC-SP (2017): "Exu e Ogum no Terreiro de Samba, um estudo sobre a religiosidade da Escola de Samba Vai-Vai", que mantém a tradição de práticas do candomblé em devoção aos orixás patronos, além de um calendário de festividades afro-católicas, como as festas de São Cosme e Damião e a Procissão de São Jorge e Feijoada de Ogum.
Falei sobre a devoção que marca a história da comunidade negra do bairro do Bexiga e remete ao território negro da região central da capital paulista, onde foram localizados antigos quilombos de escravos. Na sede da Escola de Samba Vai-Vai além das festas aos orixás Exu e Ogum, marcadas por rituais e oferendas, é possível encontrar imagens de santos, altares, oratórios e objetos sagrados associados aos orixás, que comprovam uma estreita relação, principalmente, com as práticas do Candomblé. Um diálogo complexo que relaciona rituais sagrados (afro-religiosos) com os rituais profanos, mantidos tradicionalmente por uma escola de samba, que já mantém seus fundamentos como por exemplo, a bandeira (pavilhão), a bateria, a porta-bandeira e o mestre-sala e a Ala das Baianas. As práticas afro-religiosas na Vai-Vai são realizadas sob a responsabilidade de um sacerdote, atualmente o babalorixá Pai Francisco de Oxum, que assumiu o cargo em 2010, e inclui nas festividades xirês com toques de atabaque, assim como se realizam em terreiros de Candomblé. Uma tradição afro-brasileira única no universo das escolas de samba e do carnaval de São Paulo, que remete à fundação da escola de samba. Lembando que a Vai-Vai surge no contexto carnavalesco em 1930, como cordão e se transforma em escola de samba em 1972. É reconhecida como a maior agremiação carnavalesca negra de São Paulo.

Mulheres Negras: Mulheres do Samba e do Axé

Mães do Samba e do Axé: de Ciata de Oxum às Tias Baianas Paulistas Por Claudia Alexandre claudiaalexandre.jornalista@gmail.com instagram: @claualex16 Quando o samba alcançou o centenário, já como patrimônio imaterial da cultura brasileira, uma iniciativa colocou no centro das celebrações a importância das mulheres negras nesta trajetória marcada não só por episódios de resistência, perseguição e repressão, mas também de força identitária, de solidariedade e de reordenamento social. O projeto Empoderadas do Samba, que tive a oportunidade de conhecer em 2016, durante as comemorações dos 100 Anos do Samba, em São Paulo, ganhou ainda mais importância ao provocar a reescrita de mais uma parte da história que precisa ser contada por vozes negras. Pensar a presença da mulher no universo do samba é vasculhar o acervo da cultura afro-brasileira e comprovar, por exemplo, como o imaginário da sociedade machista, sexista e racista, desde o período colonial, agiu para apagar o protagonismo e a herança destas, que foram responsáveis por construir poderosas redes de sociabilidade e elos de afetividade, que vamos encontrar até hoje nos terreiros e nas escolas de samba. O ambiente das rodas de samba, dos batuques e do ajuntamento solidário nunca foi exclusividade masculina. A própria roda é feminina, a circularidade está na função geradora, nos seios que alimenta, na roda da saia, na gira, no xirê e na possibilidade de retorno pelos braços da mãe preta. Helena Theodoro (1996, p. 34) em seu livro Mito e Espiritualidade: mulheres negras, diz que a mulher negra foi na escravidão e nos primeiros tempos de liberdade a viga mestra da família e da comunidade negra. “Neste período inicial de liberdade, as mulheres foram forçadas a arcar com o sustento moral e com a subsistência dos demais”. Mesmo assim, nos dias de hoje, vivendo realidades ainda desiguais, enfrentam narrativas que não consideram o seu protagonismo na vida social, na arte, na religião e na própria cultura. Mas, é na história da constituição do samba, com mais de 100 anos, que vamos encontrar um modelo, que nos mostra que sem a presença da mulher negra teríamos muito pouco pra contar. A essência feminina no samba manteve em perfeito diálogo o sagrado e o profano, enlaçando práticas rituais e festivas, num esforço contínuo para manter juntos passado e presente de uma matriz africana. Localizando o viver e a presença de mulheres negras no Rio de Janeiro, no período que antecede a formação das escolas de samba, entre 1890 e 1930, o pesquisador Wallace Lopes Silva (2004) escreveu Praças Negras: territórios e fronteiras nas margens da Pequena África de Tia Ciata, analisando a maneira como desde o início os agrupamentos foram regidos por uma herança matriarcal negro-africana. Tia Ciata de Oxum que é personagem famosa do samba, sempre descrita como uma mulher de personalidade forte, líder religiosa e política, tornou-se também uma espécie de ícone, para o surgimento das escolas de samba, como marco desta manifestação cultural, que sempre uniu samba e religiões afro-brasileiras. O nome próprio era Hilária Batista de Almeida (1854 – 1924). Nascida em Santo Amaro da Purificação (Recôncavo da Bahia), chegou ao Rio de Janeiro com 22 anos, já iniciada para a orixá Oxum, pelo africano Bambochê (Quimbambochê), no terreiro Ilê Iyá Nassô (Casa Branca do Engenho Velho). Bambochê era pai-de-santo de mãe Aninha (Eugênia Ana Santos), líder do Ilê Opó Afonjá, um dos mais tradicionais candomblés nagô-baiano (dissidente da Casa Branca). Teve muitos filhos, uns dizem 15 outros 26 filhos . Ela podia ser Ciata, Siata, Aciata, Asseata ou Assiata, conforme é citada em diversos sambas, prosas e livros. Embora a historiografia tente mostrar Ciata como uma líder solitária das “tias baianas”, é justo lembrar de nomes como Tia Tereza, Tia Sadata, Tia Carmem, Tia Davina, Tia Perpétua, Tia Veridiana, Tia Calu Boneca, Tia Maria Amélia, Tia Rosa Olé, Tia Gracinda, Tia Tomásia, Tia Fé, Tia Bibiana, entre outras. Eram mães, tias, avós, madrinhas, sacerdotisas, benzedeiras criando uma o filho da outra, acolhendo os conterrâneos e parentes que chegavam em massa ao Rio de Janeiro no início do século XIX, povoando com o jeito afro-baiano os territórios e praças negras, o que tornou famosa a região de Gamboa, Saúde (Pedra do Sal) e Santo Cristo, além de Cidade Nova e Praça Onze, local que ficou conhecido como Pequena África. A solidariedade das negras baianas, abrindo as portas das casas, refez o sentido de família, abriu novos canais de sociabilidade, de comunicação e afeto, resultando nas primeiras formas de poder e protagonismo da mulher negra na sociedade brasileira. Nestes espaços o sentido de sagrado e profano não era de peças separadas, mas sim de forças que dependiam uma da outra. Os terreiros eram simultaneamente locais de residência, hospedagem, encontros sociais, políticos e religiosos. Dentro das casas e também nos quintais de terra batida exerciam-se múltiplas atividades como batuques, candomblés, sambas, culinária, blocos carnavalescos e ainda vários ofícios de subsistência. O que privilegiava a casa de Tia Ciata, como ambiente propício para a organização das entidades carnavalescas e composições de sambas, eram os frequentadores famosos - artistas, jornalistas e políticos. Por ali passaram Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, além de jornalistas e intelectuais como João do Rio, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e o cronista Francisco Guimarães (Vagalume), um dos responsáveis pela divulgação do que acontecia no interior das concorridas rodas de samba e cultos religiosos, que às vezes demorava até cinco dias para acabar. De acordo com a literatura, ali teria sido composto, o primeiro samba registrado e gravado em disco, “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, em 1916. Aliás, o surgimento do primeiro samba tornou-se um mito pela polêmica causada em torno da autoria, do registro e da precedência. Até tia Ciata teria reclamado autoria. Ciata era festeira, quituteira, costureira, bordadeira e, além de comerciante, também cantava e sambava como poucas. Roberto Moura (1983) em Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro destaca ainda a destreza com que ela dançava para os orixás, durante as cerimônias religiosas. Contam que foi o orixá desta baiana quem curou uma ferida da perna do então presidente Wenceslau Brás ( 1868-1966), que governou entre 1914 e 1918. A partir deste fato, ela teria conseguido um emprego no serviço público, para o marido e afastado a perseguição policial de perto de seu terreiro, já que na época a invasão aos cultos negros, com violência e quebra-quebra era constante. Fora dos festejos religiosos, os grupos negros não podiam brincar no carnaval sem autorização das autoridades. Na casa de tia Ciata os cultos aconteciam no quintal de terra batida em um barracão de madeira. Eram tradicionais as festas que patrocinava para Ibejada (São Cosme e Damião) e para Nossa Senhora da Conceição (Oxum). Foi ela também que mostrou às tias o caminho da Festa da Penha, promovida pela colônia portuguesa, em 8 de setembro (século XVIII) e depois transferida para os finais de semana de outubro. As casas das tias baianas, o carnaval popular ( largo de São Domingos e Praça Onze) e a Festa da Penha ficaram marcados como redutos de samba e devoção negra. A tradição permaneceu mesmo após a morte de Tia Ciata, em 1924, eternizada pelas alas das baianas das escolas de samba. A primeira escola de samba, fundada no Rio de Janeiro em 1928, a Deixa Falar, já em 1931, desfilou com 72 baianas. Foi um decreto em 1933, do então prefeito Pedro Ernesto, que tornou obrigatória a Ala das Baianas em todas as agremiações carnavalescas. Em agradecimento a influência religiosa das antigas mães-de-santo, que acolheram as organizações carnavalescas e; a proteção dos orixás ao samba, muitas baterias foram “batizadas” com o ritmo dedicado a um orixá. Esse diálogo entre o candomblé e as escolas de samba deixa marcas nos dois lados. As cores das escolas, por exemplo, geralmente são escolhidas em homenagem a algum orixá, geralmente o da casa de candomblé relacionada mais intimamente com a fundação da escola. As baterias das escolas tocam sempre em homenagem a um orixá, que é considerado “patrono”. A Mangueira toca pra Oxóssi, a Portela toca pra Ogum e assim por diante. Não é à toa, também que a ala das baianas é tradicional, pois faz referência às antigas mães-de-santo que, na Bahia, vestiam-se assim. Do Rio para São Paulo: as tias baianas quituteiras Em terras paulistas, a participação das mulheres negras no carnaval das agremiações carnavalescas também conta com o protagonismo da mãe, da tia e da líder religiosa. O carnaval de São Paulo, festas religiosas católicas do interior do Estado, onde se misturavam sambas e batuques. A mais famosa foi a da cidade de Pirapora do Bom Jesus, onde se reuniam um grande número de famílias negras. Os grupos até a década 30 faziam seus batuques nas celebrações ao padroeiro e influenciaram a formações dos cordões e escolas de samba da capital. Os desfiles das escolas de samba em São Paulo foram oficializados em 1967. Desde a formação do primeiro grupo negro carnavalesco, o Barra Funda, considerou-se a presença da mulher. Das funções ditas femininas – costureiras, bordadeiras, cozinheiras e benzedeiras – até como componente onde ocupavam lugares de pastora (amadoras), contrabaliza, porta-estandarte e hoje exercendo as mais variadas funções desde ritmistas, chefes de ala, diretoras, puxadoras de samba-enredo, presidentes, porta-bandeira e com lugar garantido na Ala das Baianas. Na década de 30, pelas ruas da capital era possível encontrar mulheres negras vendendo – frutas, ovos, verduras, além de exímias cozinheiras disputadas pelos deliciosos quitutes. As quituteiras, por causa do traje típico que lembrava uma baiana ou mãe de santo, ficaram conhecidas como tias baianas quituteiras. Além do comércio, trabalhavam como cozinheiras nas mansões paulistas. Em dias de folga, reuniam-se com famílias e amigos para rodas de samba e cultos religiosos, em seus quintais de terra, sempre regados à comilança. A pesquisadora Maria Aparecida Urbano, em Mães do Samba: tias baianas ou tias quituteiras, lembra nomes como os de Nhá Maria do Café, Maria Punga, Genoveva, Sinhara, Rita Cachinguelê e Maria Cabinda. As baianas da pauliceia, como aconteciam na Bahia e Rio de Janeiro, além de percorrerem as ruas vendendo frutas e guloseimas, também participavam dos cortejos religiosos, das festas populares e, inclusive, tomavam parte nas batucadas que armavam nos pátios e largos das velhas igrejas de São Paulo. As negras quituteiras, quando ouviam a batucada, pulavam alegremente no meio da roda, seguindo a cadência do samba, seguravam a barra da saia e faziam requebrados. (URBANO, 2012, p. 92) Na história do samba paulista, estão nomes de mulheres saudosas como Dona Sinhá (Camisa Verde e Banco), Dona Olimpia e Dona Iracema (Vai-Vai), e Madrinha Eunice, a fundadora da Escola de Samba Lavapés, que também mantinha seu terreiro de Quimbanda, na Baixada do Glicério. A Lavapés é ainda comandada por uma mulher, Rosemeire Marcondes, neta biológica da fundadora. O Cordão Vai-Vai, que deu origem à Escola de Samba Vai-Vai, na década de 30, fez história na região central da cidade, lugar onde samba e religião até hoje dão sentido à comunidade que mantém estreita relação com práticas do candomblé e com a Pastoral Afro, da Igreja Nossa Senhora Achiropita. Em depoimento, emocionado, Fernando Penteado, Diretor de Harmonia, membro da Velha-Guarda e filho da mais tradicional família de sambistas da Vai-Vai, conta como desde o início no Bexiga, as tias quituteiras, todas formando a Ala das Baianas, mantiveram a tradição de unir sagrado e profano, em torno do samba. A gente cantava muito e batia na palma da mão... E um bumbo no meio. Isso ia embora a noite inteira e a poeira levantava mesmo. Além da comida, era muita comida. As tias puxavam as rezas e cozinhavam. Era tudo quituteira. Eu era moleque e me lembro. Os pés todos cheios de terra. E tinha as rezas, cantava e agradecia. Na época a gente rezava e agradecia aos santos e orixás. E no samba se alguém lembrava que tinha alguém doente, a gente rezava e cantava pra pessoa. Ninguém vai pro carnaval sem pedir à benção. (ALEXANDRE, 2015) Para as mulheres que marcam a trajetória do samba paulista, a UESP – União das Escolas de Samba Paulistanas criou, em 1995, a Embaixada do Samba, incluindo o título de embaixatriz e embaixador, que representam todas as grandes mestras e grandes mestres, da Velha-Guarda. Há também um dia especial para se comemorar: 25 de novembro é o Dia Estadual das Tias Baianas Paulistas. As Alas das Baianas são reconhecidas e reverenciadas como fundamento, portanto indispensável, no terreiro de samba. As ancestrais de Tia Ciata e de todas as “tias baianas”, mantém a ligação entre o passado e o presente, reafirmando o poder feminino na história do samba das escolas de samba. Quando giram na avenida, primeiro no sentido anti-horário, vão de encontro aos orixás para pedir licença para a comunidade desfilar, quando retornam, no sentido horário, trazem a energia para a limpeza e axé para a passagem da escola. À benção às mães do samba! 1. Artigo escrito para a Coleção “Sambas Escritos: as vozes e as memórias do samba”; Editora Polén, coordenado pelo Projeto Samba Sampa/Empoderadas do Samba. Vol. 3 Massembas de Ialodês: Vozes Femininas em Roda (SP, p. 45, 2018) Referências Bibliográficas AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e de viver no Candomblé. RJ: Pallas. SP: EDUC, 2002 ALEXANDRE, Claudia. Exu e Ogum no Terreiro de Samba: Um estudo sobre a religiosidade da Escola de Samba Vai-Vai. Dissertação de Mestrado. SP: PUC, 2015 THEODORO, Helena. Mito e Espiritualidade: mulheres negras. RJ: Pallas, 1996 SILVA, Wallace Lopes. Praças Negras: territórios e fronteiras nas margens da Pequena África de Tia Ciata. 2004 GOMES, Fabio. Tia Ciata. Jornalismo Cultural. São Paulo; 2009. Portal Geledés. https://www.geledes.org.br/tia-ciata/ acessado em 30/10/2017 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2ª. ed. rev. RJ: Biblioteca Carioca. 1983 URBANO, Maria Aparecida Urbano. Mães do Samba: tias baianas ou tias quituteiras. SP: Ed. Bem Estar, 2012