quarta-feira, 30 de março de 2016

Cléo Agbeni Martins: a escritora e ialorixá conta por que ficou seis anos em um mosteiro beneditino

Agência Áfricas de Notícias – por Claudia Alexandre Fotos: Léo Vitulli Entre 2009 e 2016, a escritora, roteirista, advogada e autoridade religiosa, Cléo Martins, ialorixá dona de diversos títulos no Candomblé, tomou uma decisão que surpreendeu a comunidade de matriz africana no Brasil. Ela ingressou em um mosteiro beneditino em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, depois de 20 anos de dedicação ao Ilê Opó Afonjá, para trilhar um novo caminho sagrado. Lá ela passou os últimos seis anos. Para muitos foi apenas mais uma atitude irreverente, daquela que sempre foi conhecida por ser “linha dura” e até brigona. “Nos tempos em que eu era jovem, com quem eu não briguei?”, disse ela sorrindo. Mas, a suavidade ao narrar sua trajetória para os convidados da recepção especial que foi oferecida pelo ILABANTU – Instituto Latino Americano de Tradições Afro Bantu (Itapecerica da Serra – SP), no último mês de fevereiro, mostra muito mais uma pessoa decida a responder a todos os chamados. “Sou uma mulher buscadora e entendo que o orixá está onde você estiver”, disse ela. Cléo é respeitada não só pelo seu engajamento político-religioso e social, mas também pelo conhecimento e ações importantes que promoveu, não só pelo seu povo de ketu, mas também por todas as nações de matriz africana. Entre os cargos que recebeu, o principal deles é o de ser a primeira Agbeni Xangô do Ilê Axé Opó Afonjá, uma das casas fundantes do candomblé do Brasil. Agbeni significa nada menos que, “aquela que divide a mesma causa, que fala por Xangô e veicula o seu axé”. Paulistana, filha do renomado jornalista Itaboraí Martins, ela que pertence a uma família de veteranos jornalistas da cidade de São Paulo, se diz apaixonada por cinofilia, enologia, e em especial, por canto coral, razão pela qual nos tempos de faculdade se integrou ao Coral do Centro Acadêmico XI de Agosto (Faculdade de Direito da USP). Filha de Oyá e Ogum, dois orixás guerreiros, foi iniciada em 1970, pela falecida Oba Sanhá (Casa Branca) e terminou suas obrigações com Mãe Xagui e posteriormente com Mãe Stella de Oxóssi do Opó Afonjá, onde atuou diretamente por 20 anos, tornando-se conhecida como o “braço direito” da famosa ialorixá. Tem orgulho de ter convivido com grandes sacerdotes e mulheres do axé, como Mametu Xagui (Carmelita Luciana Pinto), entre outros e outras. Muitos títulos coroam sua trajetória no culto aos orixás. Cléo Martins foi confirmada Aya Odé do Ilê Axé Olofacossin. É também a primeira mulher a possuir o cargo de Iya Agan, sendo confirmada no terreiro Ilê Baba Adeboula (Lauro de Freitas), um posto raríssimo e praticamente desconhecido no nosso país, que significa “mãe do ancestral” e também “mãe dos ojés”, isto no culto aos Egunguns. É autora de várias obras especializadas como: E daí Aconteceu o Encanto (com Mãe Stella de Oxóssi); Faraimará: O caçador traz Alegria – Mãe Stella 60 Anos de iniciação; Euá a Senhora das Possibilidades; Iroco o Orixá da Árvore e à Árvore Orixá; Obá (orixá) a amazona belicosa; Ao Sabor de Oyá e Nanã, a senhora dos primórdios, todos pela Editora Pallas. Além disso, como roteirista tem, entre outros, o longa-metragem A Cidade das Mulheres, que recebeu o Prêmio Tatu de Ouro e BNDS, em 2005. Um dos principais projetos que marcam sua trajetória é o Festival Internacional Alaiandê Xirê, que desde 1998 reúne mestres-tocadores de todas as nações do candomblé, entorno do ritmo, da dança e de assuntos importantes da atualidade e para a comunidade religiosa. De volta à dedicação total ao Candomblé, atualmente é a ialorixá do Ilê Axé Asiuaju, em Santana de Paranaíba (São Paulo), ao lado de seu irmão Luciano Maurício de Xangô. Durante o evento no ILABANTU, ela recebeu o convite do Taata Nkisi Katuvanjesi, Walmir Damasceno , para ser uma das parceiras na realização do 4º. ECOBANTU, encontro internacional das tradições bantu, que acontecerá este ano em São Paulo. Em entrevista exclusiva à Agência Áfricas de Notícias, Cléo Martins falou sobre sua decisão de se tornar uma monja beneditina. Agência Áfricas - O que aconteceu para em 2009, a senhora decidir se recolher em um mosteiro, em Santa Cruz do Sul? Foi um chamado? Cléo Martins - O chamado eu tive a vida inteira para o sagrado. Em 2009 eu quis experimentar esta minha vocação beneditina. Uma vocação de silêncio, contemplação, algo que eu sempre fiz. Talvez eu tivesse ficado o resto da minha vida lá. Tive uma abadessa, Madre Paula Ramos que também me mostrou crescimento, desafio, sofrimento, alegria nada diferente do Opó Afonjá. Áfricas - Você sentia a presença do Orixá neste período? Cléo Martins - O orixá está com qualquer um e onde você estiver. Sim, fiz até acarajé lá... Além de momentos de muita intimidade. Teve muitos momentos de reconhecimento, é quando agente percebe que foi feliz, como aquilo de sentir o gosto do vinho, depois que tomou. Áfricas – É possível comparar a reclusão em um monastério com a dedicação e muitas vezes a reclusão no Candomblé? Cléo Martins - O roncó que eu estava escondida estes 6 anos e meio foi um mosteiro beneditino (risos). Eu não teria saído de lá se não fosse a vontade do orixá. Eu estava muito feliz com a minha vida monástica. E tem mais, de repente o candomblé, a nossa vida no candomblé, é uma vida monástica. Eu sempre fui uma mulher muito buscadora. A coisa mais importante da minha vida foi isso, a necessidade de entrar fundo no sagrado. Eu posso testemunhar a força do orixá, no sentido do que é a vontade do sagrado, no que é vontade de Deus. Porque as vésperas da profissão solene no mosteiro, aconteceram coisas impensáveis, incríveis que me trouxeram de volta. Alegria de estar entre pessoas alegres. No Candomblé você não precisa mentir. Quem é bom é, você não esconde. Áfricas - E como elas (as freiras!) se comportavam com a sua presença? Cléo Martins - Eles sabiam de onde eu vinha, até porque eu era uma pessoa pública. – A madre fundadora me adotou como filha dela “querida”. Isso também suscitou ciúmes. Ela tem 85 anos, saiu de Minas para a Bahia para morar em Saramandaia, uma favela, como eremita. Um bairro popular. Madre Paula é uma mulher que morou numa favela. Ela olhava para mim como uma pessoa que intrigava. Os caminhos de Deus são coisas que causam surpresa. Quando você está diante do sagrado você tira os sapatos. Mas mudou. Assim que ela deixou o cargo, a nova madre me olhava como se perguntando “o que eu estava fazendo lá”. Áfricas - O que fica destes tempos no mosteiro? Cléo Martins - Não sei. Quando estava lá eu dizia que a vida é um acúmulo de experiências. Diante dos caminhos de Deus, quem sou eu para dizer o que é? O que aconteceu? Eu sou muito pequena para entender o mistério. Áfricas - A senhora está de volta ao Candomblé? Cléo Martins - Eu nunca saí de nada. Estou na roça de Santana de Parnaíba, onde Márcio de Oxalá está com a equipe dele. Sou ali o que eu quero ser agora. Sou a ialorixá avó, que conta história, que escreve, que passa tudo, neste sentido. Estou ali pra ajudar a casa dos netos, do pessoal que está chegando. Áfricas - Wlamir Damasceno, do Ilabantu, acaba de convidá-la para participar do próximo Ecobantu, por causa da sua experiência com o Alaiandê Xirê? O que é esse evento? Alaiandê é o grande mestre, o grande tocador e Xirê brincadeira. Foi um grande festival dos mestres tocadores feito com meu irmão Roberval Marinho (Brasilia) em 1998. A primeira edição Salvador, no Opó Afonjá até 2005; 2006 Bate Folha; 2007 Casa Branca; 2008 Pilão de Prata; 2009 em Recife no Sítio do Pai Adão. Quando fui para o mosteiro, o Roberval assumiu. O festival é a reunião de todas as nações de todos os mestres, do Brasil e de outros países, por tanto internacional. Reunindo alabês (ketu), xicarambongo (angola) e runtó (jejês). São apresentações com Seminários com muitos conteúdos como, por exemplo, a importância da mulher no candomblé, saúde e até ecumenismo ecológico. Ritmo, comida, tecnologia, artes e paralelo às apresentações musicais. Sobre este convite para o Ecobantu? O que é de Deus traz força. Se orixá quer, água fria é remédio. Vamos ver o que nos reserva. Áfricas – Como a senhora lida com todos os títulos e o reconhecimento que recebeu? Cléo Martins - É assim: Agbeni Xangô do Ilê Axé Opó Afonjá. Se eu tiver que me identificar em nível de um título. Eu sou a agbeni de lá. É meu umbigo que está enterrado naquela casa. De lágrimas, de alegria, como também de profunda tristeza, de crescimento e de impotência muitas vezes. Mas no final a alegria de novo, por saber que Xangô é fiel na palavra dele. Este cargo significa “aquele que divide a mesma causa, que fala por Xangô”. E também na terra de Oyá é orobô, a fruta oracular. No meu caso, é aquela maluca que Xangô escolheu para colocar o peito na frente para continuar falando pela causa dele. Áfricas - Está conseguindo corresponder ao que quer Xangô? Como está este compromisso? Cléo Martins - Eu acredito que este compromisso está cada vez mais sendo revisto. Está me dando alegria. Teve épocas de muita guerra em minha vida por ser Agbeni Xangô. Principalmente na época em que eu morava no Opó Afonjá e estava ao lado de mãe Stella. Agora não, agora Xangô mostra pra mim que eu sou a agbeni dele. Não importa onde eu estiver. Até no mosteiro beneditino onde estive por seis anos e meio eu nunca deixei de ser a agbeni.

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